Com o edifício Pellegrini em foco, os carros saíam de cena e faziam das fitas, recém tiradas da lata, únicos elementos a por ali rodar. Recluso, o ambiente surpreendia. De frente para as poltronas, no mini cinema era diferente: antes mesmo de sentar, a plateia via o filme começar dentro e sob suas cabeças.
Além de abrigar das mais variadas atividades, de 1969 a 1979 a edificação alojava da chuva, do sol e da realidade. Até porque era por lá que, ainda que do térreo, cinéfilos sentiam os pés tocar os céus e, por meio do telão de exibição, os olhos ultrapassar quaisquer fronteiras que as quatro paredes pudessem delimitar.
Capaz de receber até 110 pessoas, o discreto ambiente dava a sensação de exclusividade. Modesto no tamanho, foi, contudo, expressivo nas histórias que exibiu e nas memórias que construiu. De “Se Meu Fusca Falasse” a “Pele de Asno”, é na sala escondidinha da galeria que o jornalista Marcelo Bulgarelli, de 55 anos, agora projeta lembranças de infância.
Distração favorita de Marcelo e dos amigos, ir ao mini cinema era como embarcar numa aventura cujo ponto de partida era pegar o ônibus quando não havia quem o levasse. Colecionador de mais de 2.500 títulos, revela ‘Bulga’ que alguns dos filmes lá assistidos hoje compõe seu acervo que, mais que rever cenas, permite rever o passado.
“Éramos pequenos e o espaço também, então tínhamos a ilusão de que ele havia sido feito especialmente pra gente”.
Equivalente a um acontecimento, ir ao cinema era a garantia do bilhete do filme e, para alguns sortudos, um passe para o amor ou ao menos a concretização dele.
Ainda que não na inauguração, conta o aposentado José Leonardo dos Reis Soares, de 70 anos, que foi logo após a abertura do espaço que ele – na companhia de dona Vilma, com quem havia acabado de começar a namorar, decidiu conferir a novidade de que tanto ouvira falar. A sessão escolhida foi a de Macunaíma.
“Foi uma passagem super legal na nossa vida. Estamos há 39 anos juntos. Chegamos a ver outros filmes lá, mas foi esse que mais marcou”. Tendo abrigado e exibido obras primas do cinema, o ambiente fazia do edifício galeria de arte, e, do público, artista que, em um dia, parecia ter vivido duas vidas.
Não é à toa que foi esse um dos filmes que mais marcaram as idas do administrador Carlos Alberto Bohrer, de 67 anos, ao local: “Um dia em duas vidas”. Caracterizado pela exibição de filmes de arte, normalmente de origem europeia, “o mini cinema era aconchegante, menor” e talvez até “precursor das salas de projeção que existem hoje”, como aponta ele.
Diferente das grandes redes e do grande público
Mais do que a exibição de “O dia da coruja”, a abertura do mini cinema, em 1969, representou a projeção de um sonho há muito alimentado pelo senhor Maurício de Souza Coutinho que, aos 80 anos, relembra como foi, em torno dos 28, abrir, após o Miragem, seu segundo cinema.
Com sessões às duas, quatro, seis e oito, a proposta do visionário era dar o devido destaque a produções francesas e italianas num ambiente que prezava pelo oposto do convencional. Afinal, por lá não havia portas, mas sim cortinas e, ao invés da tela – localizada sob a cabeça do visitante, quem adentrava a sala avistava somente as poltronas.
“Era invertido. A pessoa entrava, passava debaixo da tela, sentava na poltrona e aí sim ficava na posição certa”.
Na era do cinema, como bem descreve o senhor Maurício, o ritual era romântico e ia dos cartazes nos jornais impressos, ao noticiário exibido na tela – ele cita o “Atualidades Francesas”, então distribuído pela Air France, à projeção propriamente dita.
Apaixonado pela arte de contar histórias e elas vivenciar sem sair do lugar, o empreendedor garantia a chegada de novos títulos semanalmente ao mini cinema. Dependendo da aceitação do público, por sua vez, os filmes passavam mais tempo em cartaz, como foi o caso de “Hiroshima meu amor” e “Um violinista no telhado”: sucesso estrondoso.
Reduzido, o estabelecimento tinha uma equipe igualmente enxuta: ao lado do senhor Maurício trabalhavam dois projecionistas, um porteiro, um faxineiro e uma bilheteira. Conhecedor de todos os processos lá desempenhados, é prova de que, como declarou o escritor Oscar Wilde, “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”.
Até porque, ainda criança, sempre que ia ao Cinema Petrópolis, talvez até mais que a tela, o que o cativava era o projetor, que observava com atenção da cabine do senhor Benjamin.
“Eu o pedia para observar o funcionamento, acompanhar o trabalho dele. Tem até um filme, o Cinema Paradiso, de um garoto e um operador, e eu me imaginava como ele”.
Armazenadas há décadas, as lembranças de quem o mini cinema frequentou remetem às latas em que chegavam os filmes a serem exibidos. Conservadas e fechadas hermeticamente sem que sejam comprometidas pela ação do tempo, são garantia de qualidade em tempos de pouca renovação.
(Matéria publicada no jornal Tribuna de Petrópolis em 08/12/2019)
Que delicia essas memorias! Lastimavel não ter sido mantido o cinema. Nos cabe apenas o imaginário.
Nossa!
Fui muito, eu trabalhava ao lado na Sapataria Sul Americana, de 1963 a 1973, tempo bom , SAUDADES😻😻😻
Parabéns, Carolina! Belo resgate dessa pequena sala, apesar de não morar em Petrópolis sou apaixonado por cinema, sou colecionador filmes em películas, projetores , cartazes e muito coisa relacionada a sétima arte. Também tenho um blog chamado: cinefechadoparareforma, que trata da memória dos cinemas de rua principalmente da Baixada Fluminense onde vivo.
Oi, Renato! Puxa, que bacana ter você por aqui! Muito feliz em ouvir que gostou da reportagem. Adorei saber do seu blog e também vou fazer questão de conferi-lo. Um abraço!