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Mayfair: histórias confiadas aos cabides

Onde grande parte do comercializado era importado, não era difícil, com base nos fios e tecidos, se imaginar em ambientes nos quais as vestimentas seriam as protagonistas

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Construídas sob tramas, as peças da Mayfair eram dignas de quem suas linhas interpretasse. À espera de quem por elas se interessasse, tinham suas histórias confiadas aos cabides. E, na mesma facilidade com que cruzavam mares até chegarem às estantes, em instantes conquistavam o cliente, que as mercadorias lia e percorria.

Como livros que repousam na prateleira até que sejam folheados e interpretados, uma vez explorados os trajes transportavam os fregueses a cidades e cenários distantes. Cativados pelo que diziam as linhas, iam da França à Alemanha e Itália e, numa breve parada, desejavam que o próximo destino fosse sua casa.

Onde grande parte do comercializado era importado, não era difícil, com base nos fios e tecidos, se imaginar em ambientes nos quais as vestimentas seriam as protagonistas. E foi entre os referidos artigos e acessórios do vestuário feminino que dona Morita Pires Nogueira, de 85 anos, trabalhou por 47 anos e se consolidou como funcionária mais antiga.

Fundado pelo inglês Franck Harold Sundt, em parceria com a esposa, a brasileira Constance Fialho Sundt, conta dona Morita que o negócio dispunha de duas lojas: uma no Copacabana Palace e, a outra, em Petrópolis. Com dona Celina Mercedes Leite no comando do Rio e ela por aqui, o casal vivia no exterior e mantinha a moda em dia.

Buscada pela alta sociedade, a Mayfair era equilíbrio entre o clássico e o moderno, o quente e o frio. Estrategicamente localizada em cidades com perfis climáticos opostos, permitia o intercâmbio de estoques e evitava a remarcação; no verão – daqui pra lá; e no inverno, de lá para cá.

“O patrão não admitia cobrar um valor hoje e outro amanhã”. Recorda dona Morita que também ordem do senhor Franck era sempre se referir às clientes como madames, seguidas dos nomes de seus respectivos maridos. Em outra vida, inteiramente diferente, a distinção começava pelos modelos com que iam-se às compras.

“Nunca desarrumadas! Vinham de terninho, chemise de seda; usavam joias, salto”.

Tendo vendido do melhor, dona Morita, por intermédio das entregas que vez ou outra fazia, também viu casas das mais bonitas. Ornadas com cortinas de veludo e pisos cuja limpeza era esmerada, “você não sabia nem como entrar”.

Na vitrine, o cartão de visitas

Fotos: Arquivo pessoal dona Morita – Bruno Avellar

A não ser pelo letreiro, substituído em 1998 por uma placa com os dizeres ‘Morita Modas’, a identidade do estabelecimento se manteve a mesma: da disposição das mercadorias, ao posicionamento dos móveis e a decoração. Segundo e último endereço da Mayfair, a loja 1 do número 842 da Rua do Imperador é resquício visual e comportamental do passado.

Modernizar ou modificar um detalhe que seja está fora de cogitação para dona Morita. É ali que, como bem descreve, se sente feliz e mais próxima do emprego em que esteve quando namorou, noivou, casou, engravidou, testemunhou algumas enchentes e conquistou clientes cujas bisnetas continuam a ser atendidas por ela.

Foto: Arquivo pessoal dona Morita

Além de atender, é no ambiente que dona Morita se dedica ao tricô e à leitura de romances. “Gosto deles porque me transportam para aquela cidade, aquele lugar”. E sem nem precisar abrir o livro ou folhear uma página que seja, a ex-gerente da Mayfair volta à juventude, ao Natal que fez com que caísse na moda.

A primeira queda, contudo, foi a de sua irmã mais velha, que caiu e quebrou o braço. Recém-contratada pela Casa Hermanny – perfumaria da época, não deixou outra opção ao pai a não ser mandar dona Morita em seu lugar para ajudar a empacotar os presentes de Natal. “Fiz amizades com as meninas da loja vizinha, a Mayfair, e fui pra lá depois”. 

Convidativa, a Mayfair tinha em sua vitrine seu maior cartão de visitas. Pelo menos é o que dizem as primas Elisabeth Kreischer, de 72 anos; e Isabela Mello da Costa, de 55 anos. Para Elisabeth, foi a oportunidade de ver, pela primeira vez, o que descreve como sendo grama artificial; e jamais se esquecer do dálmata em cerâmica que o mostruário estampava.

“Me lembro perfeitamente dele. Aquilo me marcou muito, tanto que lembro até hoje, 60 anos depois”.

Sem um arranhão, o ‘Cabeção’, como é carinhosamente chamado por dona Morita, o mascote de 50 anos está em todas: nas fotografias de quem passa pela loja às histórias de quem, como a mãe de Isabela, a costureira Myrthes, lá escreveu suas trajetórias.

Seu primeiro e único emprego, foi onde Myrthes, conforme descreve a filha, se tornou conhecida a estimada pelas madames da época. “Algumas vinham do Rio só para experimentar vestidos com ela!”. Motivo de orgulho e admiração atemporais, é graças à atuação da mãe na loja que Isabela viu nos cabides histórias.

“Eu adorava quando era chamada para as provas de roupa! Ficava toda contente porque eram pessoas muito importantes da época!”. Capítulo do passado da cidade, a Mayfair é tema mais que presente para quem por ela percorreu e suas peças, que até então repousavam na estante, leu e compreendeu.

(Matéria publicada no jornal Tribuna de Petrópolis em 01/12/2020)

Carolina Freitas

Jornalista e escritora, Carolina Freitas se dedica ao resgate e à valorização da memória petropolitana a partir da produção de reportagens e curtas-metragens sobre a história, o comércio, e a vida da cidade.

2 Comments

  1. Que belo texto! Me transportou para aquela época em que só olhar as vitrines da Mayfair, já nos inspirava a vestir o que estava na moda!

  2. A loja eu me lembrava, mas da Morita Modas, que eu sempre admirei a vitrine, sempre com roupas alinhadas. E d. Morita, com o tricô na mão ou em conversa com alguma amiga ou cliente. Triste agora ver a galeria sem a loja no seu lugar. Agora está feia a galeria, falta o glamour da Vitrine.

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