Ainda que trocadas as cores e estampas dos maiôs, o modelo se mantinha o mesmo: imbatível. Resumida à desenvoltura de uma águia, era a malharia capaz não apenas de detectar a concorrência, mas, sobretudo, olhar para além dela. Com sentidos altamente desenvolvidos e aguçados, foi a marca símbolo de perspicácia no Brasil e no mundo.
Somada à visão do referido animal, também devem-se às fortes e afiadas garras da águia a força dos Fisher. De origem judaica, eles mantinham na Alemanha – pelo menos até a eclosão da Segunda Guerra Mundial – a própria fábrica de moda praia, que precisou ser deixada para trás quando a família se mudou para a Argentina.
E por mais que a guerra tenha feito com que os Fisher abrissem mão do negócio, também foi o episódio que os tornou ainda mais obstinados a dedicarem a vida à moda praia, onde quer que estivessem. E assim o fizeram. Na Argentina atuaram na fábrica Olla e no Brasil não só contribuíram como alavancaram o Grupo Águia ao aproximá-lo da marca Catalina.
“A moda praia ainda estava engatinhando, então incorporar a Catalina promoveu a fábrica, que com isso passou a promover os desfiles de miss por intermédio do meu tio-avô, Pedro Fisher”. A fala é de William van Kuyk, de 33 anos. Filho de Juan Miguel van Kuyk, o Ian, ele recorda a passagem dos Fisher pela fábrica que se tornou referência mundial no segmento.
Fundada em 1937 também por iniciativa de um empresário alemão, Adler, foi principalmente nos anos 50, a partir da chegada da Catalina ao grupo, que a Águia alçou voo. De acordo com William, na década de 80 a malharia deu início às exportações e já no início dos anos 2000 foi eleita a maior exportadora do ramo no interior do Rio de Janeiro.
“A Águia foi uma potência. Começou exportando para a Itália, depois para os Estados Unidos, Chile e Uruguai, até se tornar a principal criadora e lançadora de moda praia no Brasil e fora dele”.
Abrangente nas marcas com que trabalhava, pode-se dizer que foi assim que alguns dos funcionários da malharia também se tornaram multifuncionais.
Chegando a se tornar, como brinca, ‘móveis e utensílios na malharia’, Regina Carandina, de 66 anos, deu início a sua jornada de 14 anos na empresa como modelo de prova, mas de lá saiu gerente de marketing. Fosse nos pôsteres de divulgação das coleções, na organização dos desfiles ou na elaboração das peças, havia um pouquinho de Regina em cada canto.
Ela, que chegou a ser eleita Miss Petrópolis, lembra dos desfiles homéricos produzidos nos anos dourados da firma e das divertidas histórias de bastidores que vêm junto deles, com destaque para um desfile realizado em Natal em que, tamanho o público reunido, a única alternativa foi colocar as modelos de maiô na marquise, a três metros de altura do chão.
“Sempre foi muito aventureira, então quando vi que a rua, que era onde o desfile aconteceria, tinha entupido de gente, dei essa ideia que reverberou no Brasil inteiro!”. Um outro evento que marcou sua passagem pela Águia foi a inauguração de uma loja esportiva num shopping de São Paulo em que, mais uma vez, Regina não teve medo de ousar.
“A loja até que era grande, mas inventei dos modelos patinarem pelo shopping. Sei que a polícia veio atrás e o público também achando que era ensaiado”. Tendo rodado o mundo por intermédio do Grupo Águia, Regina chegou a participar de feiras em Paris e na Itália para que, assim, acompanhasse as tendências e ajudasse na elaboração das coleções.
Coleções que, às vezes, contavam, com 100 variações de modelo cada uma, sem falar nas estampas. Peças essas, inclusive, que por 38 anos ganharam vida nas mãos da costureira Amara Maria de Jesus. Aos 66 anos, ‘Mara’ lembra de alguns dos desafios enfrentados por ela dentro da malharia que chegou a produzir 60 mil peças em um mês.
“Não me esqueço. No meu 1º dia comecei às oito da manhã e quando deu onze horas eu já estava pespontando os maiôs da misses. Era muita responsabilidade, mas a maior delas foi ter encarado a dona Lídia”. Chefe-geral da confecção era a senhora Lídia quem mantinha as engrenagens funcionando e que, segundo ‘Mara’, colocava medo até nas máquinas.
“Ela era braba. Bicho solto mesmo, mas todo mundo tinha respeito por ela. Pra mim foi muito boa”.
Descrita como uma mãe – não a dona Lídia, mas a malharia – é à Águia que muitas ex-funcionárias atribuem as oportunidades recebidas dentro da confecção, que através de uma ‘escolinha’, capacitava quem, como Adriana Neves, quisesse aprender.
Cortadeira, foi nos 32 anos como colaboradora da empresa que Adriana, de 55, aprendeu tudo que sabe. Na verdade foi lá que ela teve seu primeiro emprego e onde também se aposentou. Mas não onde parou de trabalhar, porque o corte é uma paixão da qual nem sequer pensa em abandonar. ‘Deixar a peça bonita’ é o que lhe dá vida.
“Eu entrei na Águia para ser auxiliar de confecção, mas aí depois de uns dois anos uma maestrina do corte, a Vitória, me pegou emprestada e nunca mais devolveu”. Questionada sobre as peças que mais a encantaram durante seu tempo de casa, Adriana, que jamais se esqueceu das referências dos trajes, cita o maiô 3302 – um clássico, e o biquíni 3307.
Franzido, o 3307 era oposto do semblante da equipe que, liderada por Ian, pai de William, relata prazer em lá ter aprendido e, sobretudo, saudade de com tão bom chefe ter convivido. “A gente chegava lá no setor de manhã e parecia ter chegado em casa. Era um ambiente muito bom. Devo tudo à empresa, às maestrinas e ao Ian”, completa Adriana.
Menina dos olhos de Ian, que faleceu pouco depois do encerramento das atividades da confecção na cidade, talvez a Malharia tenha sido, mais até do que símbolo de perspicácia, marca de quem, com carinho, acolheu centenas sob suas asas de águia antes de, enfim, lhes ensinar a voar.
(Matéria publicada no jornal Tribuna de Petrópolis em 09/08/2020)