Se com movimento a todo momento as estações eram sinônimo de novas sensações, pode-se dizer que, em Petrópolis, o astral do passageiro era ditado por uma banca de jornal. Afinal, aconselhado e encorajado pelo senhor Fedele Caruso, o viajante decidia e definia as linguagens e mensagens que carregaria na bagagem.
Aliadas, as palavras se mostravam fonte ora de informação ora de diversão nos percursos de trem. Como bem aponta o petropolitano aposentado Edson Gomes Gurgel, de 74 anos, a viagem era longa, o que tornava apropriada a venda dos periódicos nas eventuais paradas e, é claro, na estação.
“Antes de subir a Serra havia uma garotada que passava ao lado do trem com jornais. Eles tinham um brado engraçado que dizia ‘nic nic nic nal’. Eu não entendia aquilo até que me disseram que significava um níquel por um jornal. Na estação você também encontrava pontos de venda de periódicos, o que era muito apropriado para quem chegava”.
E não só para quem chegava, como também para quem pela estação passava, como foi o caso da aposentada Nelsinea Dunley Nogueira Rocha, de 80 anos. Descrito por ela como um cavaleiro pautado pela atenção e dedicação, Nelsinea relembra algumas das boas lembranças que guarda do senhor Caruso.
“Antes de me tornar freguesa, o senhor Caruso já era amigo da minha avó. Sei que comprei muita Manchete e Cruzeiro com ele, que sempre me indicava revistas. Me lembro que vovó gostava do Jornal de Petrópolis. Chegava a ser gozado porque eu não comprava todo dia e, às vezes, como ele separava para mim, eu levava três ou quatro de uma vez para ela”.
E se o tempo era bom para os jornaleiros, que dirá para cavaleiros como o senhor Caruso que fizeram daquele que poderia ser um simples ponto de despedida, ponto de partida para amizades e peculiaridades. ‘Nea’, por exemplo, diz que suas idas a Itararé se resumiam a dois salgadinhos: um para ela e o outro para o zeloso guloso.
O jornaleiro hospitaleiro
Tudo bem que o instrumento de trabalho do senhor Caruso eram as palavras escritas, mas isso não o impedia de, vez ou outra, interpretá-las e cantá-las na voz de tenor lírico que detinha. Seu filho, o ginecologista Enrico Caruso, de 86 anos, explica que apesar do nome que recebeu – em homenagem ao consagrado cantor italiano – o talento se restringia ao pai.
“Às vezes acontecia dele ir no hotel que havia ali em frente à estação e cantar trechos de ópera e canções napolitanas. Papai tinha uma voz muito boa, era muito educado e teve naquela banca a vida dele. Ele chegou em Petrópolis por volta de 1925, abriu a banca em 1930 e ficou com ela aberta até a década de 70”.
Aberta, pelo menos, das sete horas da manhã às nove e meia da noite, a banca se tornou parada obrigatória dos viajantes e habitantes da cidade. De acordo com Enrico, marca registrada do pai eram as conversas no cantinho do balcão com políticos, conhecidos e amigos que, diga-se de passagem, não eram poucos.
“O primeiro trem costumava chegar às sete e meia: hora em que os passageiros desciam com aqueles aventais brancos por causa da fumaça do carvão. Antes de irem para as suas residências, eles passavam pela banca e trocavam umas ideias. Eu mesmo cheguei a trabalhar lá, dos 12 aos 17 anos, quando passei a cursar Medicina”.
Enrico relembra, ainda, os tempos do jogo no Hotel Quitandinha que resultavam no fornecimento de, em média, mil exemplares do Jornal do Brasil por parte do senhor Caruso. E por falar na busca e disputa pelo material comercializado pelo italiano, o produtor multimídia Adelino de Oliveira Jr., de 60 anos, recorda os gibis disponibilizados pela banca.
“Boa parte do começo da minha coleção de gibis eu comprei ali. Era uma das únicas formas de diversão para o adolescente, então o pessoal lia muito. Eu mesmo cheguei a ter uns 400 e poucos gibis. Era muito bacana. Às vezes o pessoal sentava ali na rodoviária e trocava as revistas. Fui na banca dos meus seis aos 14 anos, praticamente todos os dias”.
Em meio a fotonovelas, jornais já extintos como o Correio da Manhã, o Vanguarda e o Jornal das Moças, e revistas como a Careta e a Suplemento Juvenil, ficava a critério do comprador estabelecer com o quê preencher a bagagem. No caso de Adelino, era nas novidades de gibi que estavam suas vulnerabilidades.
“Uma das compras que mais demorei a fazer, se não me engano, foi a revista Invictus, que trazia a história do Batman e do Superman na mesma edição. Que eu me lembre foi a prima que consagrou a encadernação com lombada. Era especial e um prazer você passar ali todo dia e ver se tinha algo novo. É um ritual que não existe mais”.
Hospitaleiro, o renomado jornaleiro mantinha o viajante informado e em vantagem com a melhor bagagem.
(Matéria publicada no jornal Tribuna de Petrópolis em 23/06/2019)