
São raríssimas – ou, talvez, inexistentes – imagens da Imperial Colônia de Petrópolis em seus primeiros meses de vida. Criada pelo célebre decreto imperial de 16 de março de 1843, Petrópolis somente seria retratada, em desenhos, pinturas e fotografias, a partir da década seguinte. Mas três publicações na imprensa da capital do império, entre 1845 e 1846, trazem curiosas informações sobre os primeiros tempos daquela que viria a ser a “cidade imperial”.
Estes textos (apócrifos) foram elaborados por três dos primeiros visitantes de Petrópolis. O primeiro foi publicado no Jornal do Commercio, em 17 de novembro de 1845. Outro é um relato, publicado em 19 de maio de 1846, no Diário do Rio de Janeiro. E o destaque é uma série de seis artigos, publicados entre abril e maio de 1846 em O Mercantil. Se o decreto imperial de 16 de março equivale a uma “certidão de nascimento” de Petrópolis, tais artigos bem podem ser considerados um primeiro “retrato”.
De maneira geral, os artigos corroboram aquilo que pesquisadores já atestaram através de outras fontes (documentos oficiais, relatórios, relatos pessoais etc). Mas estes depoimentos trazem outras características: reconstroem cenas e cenários; descrevem personagens e trazem detalhes ainda não contemplados na historiografia. À época, não havia reportagens na imprensa brasileira – gênero que só iria surgir no século XX. Mas não parece equivocado considerar que os artigos de O Mercantil, em especial, constituem a primeira reportagem sobre Petrópolis.

* Ilustram esta matéria desenhos do engenheiro Oto Reimarus, feitos em 1859
A toque de caixa
Em seu primeiro artigo n’O Mercantil, o autor se justifica: “Visitamos ultimamente a vila ou cidade de Petrópolis e a colônia alemã que lhe é anexa e, vendo que no Rio de Janeiro não se fazia dela nenhuma ideia mui exata, formamos o propósito de escrever alguns artigos”. Ao distinguir a “vila ou cidade” da colônia, o autor estava distinguindo o hoje chamado Centro histórico dos 12 quarteirões coloniais planejados por Júlio Koeler. Segundo o relato publicado, naquele primeiro semestre de 1846 Petrópolis era um grande canteiro de obras:
“Tudo ali se faz com inexcedível atividade e o trabalho de um mês traz mudanças extraordinárias. Alguns meses atrás era Petrópolis uma mata virgem (…) Hoje porém, já existe ali uma população considerável, grande número de casas e muitas e variadas plantações”.
Já havia então 14 ruas – hoje as principais do Centro histórico – e a canalização dos rios estava bem adiantada. A ideia de uma cidade surgindo no meio da mata, em questão de meses, impressionou o articulista:
“Quem passa pela estrada geral de Minas nada vê e não pode fazer ideia da colônia: muito menos quem passou por ali há cinco ou seis meses, porque tudo ou quase tudo era então mato virgem e nada havia que ver. Hoje, porém, as pessoas que visitam a colônia e correm os caminhos dos diversos quarteirões acham um mundo inteiramente novo: mais de 500 casas, maiores ou menores, se edificaram como por encanto nesses vales onde, há meses atrás, os raios do sol não penetravam”.
Outro relato (igualmente apócrifo), publicado em novembro de 1845 no Jornal do Commercio, já atestava a velocidade das mudanças ocorridas desde a chegada dos primeiros colonos, em junho:
“Dentro de quatro meses (parece incrível, mas é fácil verificar) quase toda a colônia está estabelecida: uns moram em suas casas, outros em choupanas, Os que receberam terras as estão cultivando e, o que mais é, não poucos já comem hortaliças e legumes que plantaram (…) qualquer incrédulo ir ver como, em menos de quatro meses, de 500 a 600 famílias fizeram outras tantas casas em que moram, cultivam outras tantas hortas, cantando hinos em honra a Deus”.
Os ricaços da Mosela
Como eram essas casas? “Cada prazo ou propriedade dos colonos forma por assim dizer um pequeno quadro destacado, em que às vezes aparecem essas boas e risonhas caras alemãs, alguns louros meninos olhando embasbacados para os visitantes que passam”, contou o articulista de O Mercantil, descrevendo as moradias:
“Umas têm somente dois quartos, outras quatro; algumas são muito maiores e de bonita aparência. Não se encontra ali nenhuma (ao menos pertencente a algum colono alemão) dessas casinhas rústicas, cuja única entrada serve ao mesmo tempo de porta, janela e chaminé: todas elas têm pelo menos uma porta e uma janela e a cozinha fica em um ranchinho separado. No quarteirão chamado Mosela, em que moram todos os ricaços da colônia, todas ou quase todas as casas têm três ou quatro janelas e, o que mais é, com vidraças (…) As casas são cobertas a maior parte de palha, algumas de taboinhas e algumas de telhas, feitas numa olaria que já ali existe na vizinhança do morro em que se há de construir a igreja de São Pedro de Alcântara”.
‘Tudo trabalha’
Outro cronista anônimo, que pretendia adquirir um terreno na imperial colônia, registrou, em maio de 1846, no Diário do Rio de Janeiro, uma rápida visita feita a Petrópolis. Ele se encontrou com Koeler, “que nos recebeu com muita urbanidade e cavalheirismo”. E também se surpreendeu com a rapidez das obras: “Muito admirados ficamos em saber que os imensos trabalhos que víamos se haviam feito em 8 meses, mais ou menos, que tanto há que chegaram os colonos”. O cronista descreveu a rotina de trabalho:
“É admirável como, ao romper da aurora, ao toque da sineta chamadora do trabalho, tudo se reúne em pouco tempo nos pontos dados: homens, mulheres e crianças de ambos os sexos, tudo trabalha. Sendo digno ainda mais de admiração a alegria com que uns manejam o alvião [uma espécie de picareta], outros a enxada, as mulheres com pás de ferro e o carrinho de mão conduzindo o aterro, e ainda as crianças com seus cestinhos. Koeler (…) aparecendo em todos os pontos dá as precisas ordens, fazendo distribuir trabalho como melhor convém”.
O autor de O Mercantil enumera quanto os colonos empregados nas obras públicas ganhavam diariamente. A informação confirma o trabalho infantil (embora fosse proibido para meninas menores de 15 anos). E também as diferenças salariais, segundo a idade e o sexo. O articulista observa que “à primeira vista poderão estes salários parecer excessivos”. À guisa de comparação, seguem produtos com preços equivalentes, segundo anúncios de jornal da época:
Homens:
Até 10 anos – 80 réis (um ou dois pães)
De 10 a 18 anos – 800 réis (meio quilo de manteiga inglesa, ou uma garrafa de vinho português)
Acima de 18 anos: dois cruzados (ou 1.600 réis: uma camisa de linho)
Mulheres:
De 15 a 18 anos – 300 réis (meio quilo de presunto alemão, ou um lenço de cambraia)
Acima de 18 anos – 600 réis (um livro, ou uma pena para escrever)
No grande canteiro de obras, ainda havia muito trabalho a ser feito. “Por ora existem apenas algumas pontes provisórias. Em alguns lugares, um pau atravessado serve de ponte”, exemplificou o articulista de O Mercantil, explicando:
“Petrópolis é destinada a ser, em ponto pequeno, o Versailles da corte imperial do Brasil. Mas antes que Petrópolis chegue a este ponto de grandeza e prosperidade, resta ainda muito o que fazer. Em primeiro lugar cumpre que a cidade se acabe de edificar. As construções não estão ainda muito adiantadas por causa dos nivelamentos e aterros que foi preciso fazer nas vizinhanças do palácio imperial”.
Um outro endereço para o imperador

Naquele momento, segundo os artigos, a prioridade de Júlio Koeler era concluir o palácio imperial. Isso significava não apenas tocar a construção, mas, antes dela, terminar de preparar o terreno: “O encanamento das águas, o nivelamento do morro em que se está construindo o palácio do imperador têm ocupado a maior parte dos trabalhadores alemães”, informava O Mercantil. E, curiosamente, ainda segundo a publicação, o palácio, deveria ter sido construído em outro endereço:
“A princípio tinha-se escolhido outro lugar para a construção do palácio imperial, e era na extremidade da rua de Dom Afonso [hoje, avenida Koeler], pouco mais ou pouco menos onde agora está a praça do mesmo nome. Porém Sua Majestade a imperatriz gostou mais do lugar onde o palácio se está hoje edificando, e ela mesma escolheu e o designou ao engenheiro. Não podemos deixar de louvar o gosto de SM a imperatriz. O sítio por ela escolhido é muito mais fresco e pitoresco do que a planície em que está a praça de Dom Afonso” [a atual praça da Liberdade].
Segundo esta avaliação, o palácio seria situado aproximadamente onde hoje está a Universidade Católica, na rua Barão do Amazonas. O Jornal do Commercio (dentre outras fontes) já havia noticiado, em 17 de novembro de 1845, que o casal imperial estivera em Petrópolis no início daquele ano: “Foi o imperador [para Petrópolis] marcar os lugares da igreja, do palácio etc e em maio se deu princípio às obras”. Mas, se havia algum plano inicial de posicionar o palácio em frente à praça da Liberdade, a ideia foi descartada pelo palpite da imperatriz.
A informação não é confirmada pela historiografia, mas lança uma curiosa teoria. Que talvez justifique o fato de não haver, em Petrópolis, uma grande área aberta, praça ou largo em frente ao palácio, de onde se poderia admirar a fachada da construção (tal como nos palácios da Europa, possíveis modelos). Koeler poderia, talvez, ter se inspirado, por exemplo, no Sans Souci, residência de verão do kaiser prussiano: o projeto guarda fortíssimas equivalências (tanto na planta quanto na configuração do terreno) com um palácio petropolitano que estivesse localizado onde, hoje, é o relógio das flores.

Duas mil vozes alemãs

O cronista de O Mercantil chegou a Petrópolis pouco depois do Domingo de Ramos (que, em 1846 caiu no dia 5 de abril). Ele encontrou os colonos ainda bastante impressionados com a cerimônia ocorrida dias antes, presidida por dois sacerdotes – um católico e outro, evangélico. Sua “reportagem” reconstitui, com base em relatos, um evento que reuniu praticamente toda a população da imperial colônia. Neste dia foi erguida uma cruz na praça Coblenz, onde atualmente situa-se o palácio de cristal. Conta o cronista:
As cerimônias de Domingo de Ramos deixaram em todos os ânimos uma impressão profunda. Tinha-se escolhido este dia para a ereção de uma cruz na praça de Coblenz ou da Confluência (…) Nesta praça tinha-se erguido um altar ao pé de onde se deveria erguer a cruz. De ambos os lados do altar esteios fincados ao chão sustentavam um teto de folhagem e grinalda de flores, e formava linda e aromática capela.
Todos os habitantes da colônia, católicos e protestantes, brasileiros e alemães e outros estrangeiros, homens e mulheres, meninos, rapazes, varões e velhos, todos enfim, à exceção dos doentes, assistiram à sagrada cerimônia. Adiante, iam todos os meninos e meninas, levando cada um uma cruzinha de pau enfeitada de flores. Logo depois vinham os ministros da religião, ornados com vestes sacerdotais. Havia nesta procissão para mais de duas mil pessoas.
Pessoas que foram testemunhas desta cena sublime confessaram-nos que nunca ouviram concerto que mais impressão lhe fizesse do que o dessas duas mil vozes alemãs que cantavam os salmos sagrados. O povo alemão é eminentemente músico e por isso o canto na Alemanha tem mais poder e prestígio do que em outras nações menos artistas por natureza.
Um grupo de 12 anciãos agradeceu o envio de representantes religiosos, oferecendo uma coroa de flores. Um deles, chamado Monken e morador no quarteirão Nassau (a atual avenida Piabanha), discursou para os sacerdotes e para Koeler: “As palavras do velho Monken que, pela sua eloquência natural, já a muitos alemães haviam causado admiração, comoveram profundamente (…) Koeler por sua vez ficou enternecido ao ver a expressão franca e leal dos colonos, que o consideram antes seu pai que seu diretor”.

Bicho-do-pé e ‘nostalgia’
Mas nem tudo era alegria na vida da imperial colônia. Dos (aproximadamente) 2.100 alemães chegados a Petrópolis no segundo semestre de 1845, em menos de um ano aproximadamente 160 haviam morrido devido às condições da viagem ou à precariedade dos alojamentos onde inicialmente foram instalados – galpões, que o articulista de O Mercantil denominou “depósitos”. Ele enumerou algumas causas de doenças fatais:
Amontoamento dos colonos a bordo dos navios em que vieram, nos depósitos; como nos depósitos da Praia Grande quanto em Petrópolis; comida a que não estavam acostumados; péssima acomodação nos primeiros meses; grande umidade proveniente das chuvas de verão; trabalho penoso à chuva e no meio da lama (…) A maior parte dos que sucumbiram foram crianças recém-nascidas e velhos de 60 e 70 anos
Conversando com o médico da colônia, “sr. Dr. Melchior”, o articulista descobriu “que a moléstia que mais estragos tem causado entre os colonos é a disenteria” (frequentemente provocada, como se sabe, pelo consumo de água contaminada). Além disso, “uma moléstia terrível, que principiara-se a desenvolver-se e levou muita gente,” foi o tifo (causado por bactérias transmitidas por insetos). A ameaça, segundo o relato, fez Koeler acelerar a construção das casas dos colonos, “a fim de desentulhar [esvaziar] os depósitos e neste empenho empregou tal atividade que o mal não teve tempo de fazer grandes estragos”.
O cronista de O Mercantil visitou o hospital da colônia, então instalado na rua do Imperador (aproximadamente onde hoje está o shopping Dom Pedro II) e prestes a ser transferido para a rua dos Artistas (a atual 7 de Abril). Embora comentasse a inconveniência do novo endereço (fronteiro ao cemitério, então localizado nos atuais terrenos da igreja do Sagrado Coração, na Montecaseros), o autor acreditava que a mudança poderia ser benéfica.
Mas, naquele momento, havia no “hospital” de Petrópolis 50 pacientes internados. Boa parte deles sofria com feridas causadas por tungíase – provocada por uma pulga, popularmente conhecida como “bicho do pé”.
Embora afirmasse que no hospital não havia “nenhum (paciente) com doença grave”, o cronista de O Mercantil descreveu alguns alemães idosos internados, vítimas de uma “moléstia causada pelas saudades da terra natal, moléstia moral, mas que influi de forma terrível sobre o físico”: tratava-se da “nostalgia”,
Os sintomas parecem apontar para o que hoje, talvez, se definisse como depressão:
Sentados ou deitados na cama, mudos e quedos, estes desgraçados alemães definhavam a olhos vistos. O corpo inerte jazia no hospital do Córrego Seco, porém as vistas fixas procuravam penetrar as paredes ou o teto, o pensamento atravessava o espaço e os mares e a alma, melancólica e gemebunda, ia vagando pelos pátrios vales. Já não pareciam pertencer a este mundo, recusavam toda a comida e, no meio de saudosas recordações, extinguiam-se pouco a pouco e exalavam a vida como o último suspiro.

Esperanças
Embora o Brasil já houvesse testemunhado outras iniciativas de colonização, Petrópolis parecia ser, àquela altura, uma experiência, um “ensaio”, segundo o cronista de O Mercantil. O sucesso da imperial colônia poderia incentivar a vinda de outros alemães: “Toda a Alemanha tem os olhos fitos na colônia petropolitana” e, por isso, “na colônia de Petrópolis jogam os destinos da colonização no Brasil”.
Para o autor, era a chance de, enfim, substituir “com vantagens” a mão de obra escrava. Avaliando o exemplo de Petrópolis, ele quis demonstrar que “a província lucrou com o emprego de braços livres”. E enumerou os motivos para esta conclusão: “aos colonos, a província só paga em dias que trabalham: se chove ou se estão doentes, chove ou estão doentes por sua conta”. Em comparação, “escravos alugados custavam a diária, independentemente da chuva ou doenças”. Além disso, “colonos comem à sua custa”, enquanto escravos precisavam de cozinheiros, sem contar com o emprego de feitores.
“O (trabalho) dos colonos alemães, quanto à qualidade, será sem contestação alguma muito mais perfeito e, pelo que respeita à quantidade, passará talvez do dobro (…) A província lucra porque, com o mesmo dinheiro, obtém mais trabalho e melhor”
Embora argumentasse apenas sob o ponto de vista econômico, o cronista de O Mercantil parecia ter expectativas quanto à substituição da mão de obra escrava (e, claro, no fim da escravidão). Como se sabe, ainda seriam necessárias quatro décadas para este sonho se tornar realidade.
A análise, porém, parece trazer outra característica: ratificou outro “ensaio”, outra nova experiência que se iniciava no país. Assim descrita, faz crer que Petrópolis já era, afinal, apenas uma (muito) promissora esperança.
Havia ainda: 4 padarias, 2 açougues e 9 casas de negócio, além de uma em cada quarteirão.
Primeiras imagens



Caraa Carolina,
Um magnífico trabalho, o seu! parabéns.
Fernando Luiz de Pércia Gomes fernandolpgfla@hotmail.com