Fundamentada em anéis, pode-se dizer que para estimar a idade da loja e do que saía dela, bastava analisar a formação tanto dos anéis de crescimento na madeira dos móveis, quanto das alianças entre funcionários. Na Martins Filho e, em família, crescia-se e fortalecia-se em contato com aquilo que a mão e o coração é quem faz.
De qualidade e durabilidade indiscutíveis, o estabelecimento – referência do jeito que era – detinha a preferência dos compradores. A professora aposentada Sueli Silva Silveira, de 76 anos, ex-moradora da Paulo Barbosa – onde estava localizado o negócio, menciona os fatores que, além de boas compras, garantiam a fidelidade do público.
“A loja era preferencial ali na rua e na cidade. A madeira era maciça, envernizada. Nossos móveis, inclusive os do quarto da mamãe, eram todos da Martins Filho. Nossa sala de jantar também foi comprada lá, toda em couro trabalhado. Eles tinham bom gosto e sabiam vender, eram simpáticos. Era uma loja e tanto”.
E como todo móvel que passa a fazer parte da rotina de uma família, se falassem, aqueles adquiridos na Martins Filho certamente teriam muitas histórias para contar. A artesã Lúcia de Medeiros Rodrigues, de 72 anos, relembra a aquisição do berço de seu primogênito e as várias lembranças que marcaram a época.
“Como esquecer da Martins Filho? Demorei muito a engravidar e o Luiz Artur só nasceu no meu quinto ano de casamento. Era uma loja tradicional e eu morava praticamente em frente. Atravessando a rua, bati o olho no berço, gostei e achei bom: prático e de qualidade. Mais tarde o móvel acabou sendo usado também pelo meu segundo filho, Luiz Eduardo”.
Equipado com gavetões e uma grade cuja altura poderia ser modificada à medida que o bebê fosse crescendo, o bercinho garantiu à mãe de primeira viagem a tranquilidade que almejava. E se a compra foi feita antes de Luiz Artur nascer, a entrega, por outro lado, só depois de Lúcia sair da maternidade. Superstição ou não, era melhor não arriscar.
“Eu ainda não tinha visto nenhum berço como aquele. Acho que era novidade. Naquela época existia um mito de que se você colocasse o berço no quarto antes da criança nascer podia acontecer alguma coisa, então fizemos essa observação na nota da compra e eles só entregaram depois que saí da maternidade”.
E por falar em compras que acompanharam fases e momentos especiais dos fregueses, a do lar Mirian Patrício Fonseca, de 66 anos, recorda o primeiro toca discos tido por ela, presente em comemoração aos seus 15 anos dado pelo pai. Fiel escudeiro por cerca de dez anos, o aparelho era companhia certa da jovem Mirian.
“Naquele tempo a tampa dele era a caixa acústica. Eu achava lindo! Foi algo que me deixou muito alegre porque, como eu era muito quieta, minhas distrações eram ler e ouvir música. Eu ia para o meu quarto, fechava a porta e ficava ouvindo minhas musiquinhas. Era muito na minha, então meu mundinho era esse”.
Se por um tempo o toca discos foi a válvula de escape da então adolescente, mais tarde foi aquele mesmo aparelho o responsável por dar a ela o ‘empurrãozinho’ necessário em direção a uma vida social mais ativa. Portátil, fazia sucesso entre os jovens em suas viagens de volta a Guarapari, onde nasceu.
“Eu levava ele nas férias comigo. Era a única que levava um sonzinho. Me lembro que íamos para o Country Club, eu ligava o som na varanda do alojamento e a turma ia atrás de mim. Parecia uma maletinha, mas era potente e muito bom. Só me desfiz dele quando já estava com quase 25 anos”.
Prazer em vender e atender
Fosse no ambiente profissional ou no familiar, os Martins trabalhavam em prol da união. A astróloga Luci Igrejas Martins, de 69 anos, neta do fundador da loja de móveis, Augusto Igrejas Martins, explica como o empreendimento teve início e, mais importante, como se manteve no mercado por mais de 50 anos.
“Na verdade meu bisavô, Manuel, já tinha uma loja de móveis, então foi ele quem, de fato, entusiasmou o filho a trabalhar junto dele. Depois vovô fundou a loja e chamou os filhos para serem sócios: o René, o Arthur – meu pai, a Isabel e o Altino. Ele tinha um prazer imenso em trabalhar com eles e essa vontade de manter a união”.
Além da vasta oferta de móveis – em sua grande maioria vindos do Sul do país – o prédio de quatro andares contava com a produção própria de travesseiros, cadeiras/bancos e colchões que, naquela época, eram feitos de crina. De acordo com Luci, para facilitar o manuseio do material, até máquina para desfiá-lo o pai chegou a criar.
Quanto à seleção das mercadorias que seriam comercializadas, tarefa pela qual o senhor Arthur era responsável, não raras eram as vezes em que visitavam-se as fábricas para escolhê-las. “Meu pai viajava com frequência com minha mãe para escolher o que tinha, ver o que interessava ou não”, diz.
E se a compra dos produtos ficava com o senhor Arthur, por outro lado, era por conta do irmão, senhor Altino, que ficava a venda. A professora universitária Sônia Martins de Pina Cabral, de 69 anos, filha do prestigiado vendedor, conta que além do gosto do pai pela profissão, suas lembranças a remetem aos Natais em que ajudava na loja.
“Fazíamos os laços para colocar nas geladeiras e nas máquinas de lavar roupa, embrulhávamos porta-revistas e também as miudezas que eram vendidas. Sinto muita falta daquela época porque era um glamour você entrar numa loja daquelas. Não tinha enfeite, eram só móveis e eletrodomésticos, mas era um glamour”.
Fotos: Arquivo pessoal Sônia Martins de Pinha Cabral
Como bem aponta Sonia, a sofisticação da época transparecia já nas enormes vitrines que, quando não reproduziam um cômodo mobiliado por inteiro, faziam referência a datas festivas, tais quais o Dia de Nossa Senhora de Fátima e o Sete de Setembro. Atraentes e envolventes, elas faziam efeito.
“O decorador era o Lester Carneiro, que pintava os preços em letras grandes e arrumava as vitrines todas mobiliadas. Muitos clientes olhavam a vitrine, chegavam e diziam assim: vou levar ela toda. As pessoas gostavam daquilo. Às vezes tinha um faixa com as letras vermelhas com o escrito ‘vendido’. Era muito legal”.
Entre pais e filhos nasceu e cresceu a loja de móveis Martins Filho. Fora os quatro filhos (René, Arthur, Altino, Isabel) e sete netas (Sueli, Luci, Sonia, Leila, Marisa, Lúcia e Regina), é seguro dizer que, mais do que um patrimônio, o senhor Augusto deixou para trás a lição de que não há matéria-prima mais rica do que a união.
(Matéria publicada no jornal Tribuna de Petrópolis em 28/07/2019)