Anteriores ao próprio decreto de fundação da cidade, os primeiros registros de enchentes em Petrópolis remontam ao ano de 1834. Mais do que evidência do passado, no dia 15 de fevereiro o município comprovou que a história se repete e, infelizmente, volta a ser narrada simultaneamente à contagem crescente de suas vítimas em função do descaso público.
Há uma semana, Petrópolis viveu a maior tragédia da história do município. Até o momento, mais de 190 mortes já foram contabilizadas, sendo 37 delas de menores de idade. 69 permanecem desaparecidos e outros mais de 800 estão desabrigados, amparados por 13 pontos de apoio na cidade. Entre os resgatados com vida estão 24 pessoas que renasceram após o ocorrido.
As imagens do dia da tragédia e daqueles que se seguiram assustam e traduzem uma parcela bem pequena da angústia e do sentimento de impotência vivido desde então. Arquivista por 38 anos do setor de Arquivo Histórico do Museu Imperial, a historiadora e pesquisadora Fátima Argon mantém referências do histórico de enchentes na cidade.
Segundo Fátima, um dado particular chama a atenção: “a primeira enchente é anterior ao próprio decreto de fundação de 1843. Ela é do ano de 1834. A gente vê que é um problema que Petrópolis enfrenta mesmo antes de ser constituída como povoação”, relata a historiadora que menciona, ainda, o curto intervalo entre as ocorrências ao longo dos anos.
São enchentes registradas nos anos de 1856, 1859 e, pouco depois, em 1862, quando o próprio D. Pedro II relata sua preocupação quanto aos temporais em um diário de viagens. “(…) pouco se fez do ano passado para cá. Os estragos que fez a enchente levaram dois meses a reparar, segundo me disse o engenheiro”, pontuou o imperador.
Certa vez, enquanto indexava as atas da Câmara Municipal de Petrópolis, Fátima identificou que no ano seguinte ao relato de D. Pedro II, foi enviado à Câmara um ofício ao governo da província pedindo que fossem tomadas providências para a solução das inundações. Hoje, além de imagens que muito se parecem com as do passado, as solicitações permanecem.
“É uma história que se repete. A gente hoje vê o município também pedindo socorro ao governo do Estado. Não se encontra uma solução e me parece sempre por uma questão política e não técnica na maior parte das vezes”, descreve a pesquisadora. Nos anos seguintes, o problema se revela uma constância na realidade dos moradores.
Em veículos de comunicação da época, como o Mercantil e o Paraíba, são relatadas enchentes, ainda, em 1873, 1875 – vez que a Fábrica São Pedro de Alcântara foi afetada, 1882, 1895, 1897, 1902, 1903, 1904, 1906 e inúmeras delas na década de 1930. Posteriormente, marcaram a história local, ainda, os eventos de 1965, 1966, 1988 e 2011.
Antes seguidas de danos pontuais materiais, as chuvas torrenciais em Petrópolis preocupam cada vez mais os moradores pela intensidade com que acontecem e pelo número crescente de vidas atingidas. Afinal, ainda que passados quase dois séculos desde as primeiras ocorrências de enchentes na cidade, pouco foi feito para transformar o cenário.
O que fazer para a história não voltar a se repetir?
Em conversa com a engenheira sanitarista Rafaela Facchetti Assumpção, que atua no Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz/RJ, a servidora abordou as enchentes na cidade sob a ótica das políticas públicas, revelando o que precisará ser colocado em prática para que mais desastres sejam evitados.
Dificilmente um petropolitano não conhece alguém próximo que não tenha sofrido com as forças da água. Entre os moradores de longa data, a tragédia do dia 15 de fevereiro fez lembrar do medo e da insegurança provocados pelos eventos de 1988, quando 134 pessoas morreram após dias consecutivos de chuvas ininterruptas.
Para a engenheira, a tragédia deste ano foi resultado de uma soma de fatores potencializados pelo fato de que, desde outubro, não para de chover na cidade. “Tivemos pouquíssimos dias de Sol. O solo de Petrópolis e de toda a região estava saturado. E dessa vez a chuva estava bem concentrada nas bacias do Quitandinha e do Palatino”.
Construída na várzea de canalização dos rios e dada a sua formação geomorfológica, para especialistas as inundações dificilmente serão encerradas completamente na cidade. A preocupação, agora, é em como pensar no município de maneira integrada para que os danos e prejuízos sejam minimizados a longo prazo frente às chuvas recorrentes.
Com 14 áreas críticas por toda a cidade, Rafaela fala sobre a importância de serem criadas políticas públicas habitacionais contínuas e um sistema firme de fiscalização para que não sejam construídas casas nas encostas que, uma vez ocupadas, têm sua drenagem natural removida, fazendo com que água acumule e deslizamentos aconteçam.
“Você não consegue remover toda a população da área de risco de uma vez só. É uma situação complicada porque demanda um planejamento muito grande de se ter diversos terrenos para transferi-las. Não é simples. Esses locais precisam ter escola, transporte, saúde”, descreve a engenheira sanitária.
Para a especialista, uma das poucas medidas tomadas para reduzir o impacto das inundações foi a construção do extravasor do Palatinato, que, mesmo na espera por reparos, auxilia na redução das enchentes do trecho que vai do Terminal Rodoviário até o Obelisco. Ainda assim, não se trata da melhor solução do ponto de vista ambiental.
“Quando a chuva entra pelo Morin, ela extravasa pelo Itamarati. É uma solução de engenharia, mas não a melhor do ponto de vista ambiental. Você transfere de um lugar para outro. Corrêas às vezes não chove tanto, mas registra inundação por causa do grande volume de água vindo do Centro”, aponta Rafaela.
Com a drenagem pluvial da cidade comprometida, o extravasor no aguardo por consertos e a construção de cada vez mais condomínios em áreas de proteção ambiental, a profissional ressalta a importância de alinhar medidas capazes de tornar Petrópolis mais resiliente, sem que o limite de ocupação ambientalmente favorável seja descumprido.
Foto: Gladstone Lucas
Parte de sua tese de Doutorado, o Plano Koeler foi estudado a fundo pela Dra em Ciências na área de Saúde Pública. Segundo ela, um dos primeiros descumprimentos do plano ocorreu ainda na construção da Fábrica de Tecidos São Pedro de Alcântara. “Ali na Washington Luís era para haver uma segunda via e a fábrica impediu isso”.
E a especialista prossegue: “Temos um estreitamento brutal do rio na Coronel Veiga. Ele é muito mais raso e estreito do que no resto e isso faz um estrangulamento. No Centro, por sua vez, deveria haver uma faixa de proteção entre o rio e as construções de 30 a 40 metros. Seria a área não edificante e isso não ocorreu”, conclui.
Sem se imaginar que Petrópolis cresceria na velocidade e proporção com que aconteceu, o que se vê é o descumprimento constante de normas de segurança. Como bem descreve o filósofo Søren Kierkegaard, “a vida é entendida olhando-se para trás, mas deve ser vivida olhando-se para a frente”. Espera-se que rumo a novas políticas públicas e à consciência coletiva de que não se trata de um evento isolado, mas de uma constância que precisa de soluções urgentes antes que novos sonhos, histórias e vidas sejam comprometidas.
(Reportagem produzida para a Sou Petrópolis e veiculada no site em 22/02/2022)
A querida Rafaela, minha amiga dos tempos de menino, arrasando nos comentários importantes e pertinentes sobre o que Petrópolis precisa para sair dessa situação triste e sonhar com dias melhores. Que ela seja ouvida, que haja um desenvolvimento da maturidade política e ecológica dos habitantes. É uma luta muito grande e nobre.