Ao dominar a arte da funilaria, mal sabiam os Pfeiffer que, até mais do que o negócio que haviam criado, ‘ao regador’ denominaria a forma com que a família irrigava os canteiros pelos quais passava. Nas ferragens ou em qualquer que fosse o terreno, era deles o dom de fazê-lo propício para o desenvolvimento da vida.
Numerosa, a família percebeu, logo de início, que teria de se inspirar no utensílio para, mais do que o nome da loja, pautar a forma com que ela seria conduzida. E foi aí que surgiu a ideia de distribuir a demanda entre os irmãos, que funcionariam como as perfurações do objeto: independentes e, sobretudo, mais abrangentes juntos.
Fundado pelo descendente de alemães Jorge Pfeiffer, foi principalmente na figura de seus filhos – Maria Amélia, Jorge Paulo, Elmo Gerado e Olga Raquel – que o estabelecimento se consolidou e cumpriu com sua missão de disseminar a vida. Até porque foi a frente do negócio que o quarteto garantiu a deles.
Variada a ponto de comercializar de um prego a uma peça de louça, conta a filha de Elmo, Elisabeth Pfeiffer, de 70 anos, que, nos tempos do avô, o empreendimento era especializado em serviços de funilaria, o que explica o nome e a abertura que tornou possível, mais tarde, uma atuação mais ampla por parte do grupo.
“Todo o patrimônio deles, que pararam de estudar para tocar a loja, foi conquistado a partir dela”.
Capítulo significativo na história do comércio local, a ‘Ao Regador’ determinou, mais ainda, o início e o fim da atuação dos Pfeiffer no ramo. Não por falta de interesse da terceira geração, mas pela forma como pensavam os sócios.
Medo, talvez, da modernização? De perder o controle sobre algo que eles haviam criado? O que se sabe é que eles optaram por vender a firma para um outro comerciante da cidade; época em que ela foi transferida da Avenida XV de Novembro, 453 – onde foi fundada – para o sobrado ao lado do Edifício Pellegrini, alguns metros a frente.
“O filho do comprador era meu dentista e eu brincava com ele, dizia que um dia a compraria de volta. Mas não teve jeito. Morreu a loja e morreu com eles”, lamenta Elisabeth, que, ainda que não tenha herdado a empresa, preserva a organização do pai e, com o coração cheio de emoção, relembra, grata, a trajetória dos Pfeiffer.
O que cultivam seus canteiros?
Fundamental na jardinagem, (a)o regador se tornou também essencial à rotina de fregueses de longa data, como foi o caso do professor Daniel Evangelista Coelho, de 67 anos. Por quatro décadas ele explica que nunca recusou uma ida sequer à loja – nem que o motivo da compra fosse um simples parafuso.
Cliente dos dois endereços que o estabelecimento teve, Daniel vincula a casa comercial à figura do pai, Manoel Joaquim Coelho. Se no princípio iam os dois às compras; nos anos seguintes as jornadas ao recinto eram feitas apenas por Daniel, cuja principal companhia eram as recordações dos dias em que o programa era feito ao lado do pai.
“Já adulto comprei lá alicates, máquinas, compressores, martelos e arcos de punho importados. Eram marcas famosas inglesas, italianas”. Engenheiro mecânico, Daniel confessa que, de tão recorrentes, suas compras na casa comercial lhe renderam máquinas que ainda estão na caixa ou que, na época, nem sabia usar.
“Me lembro de uma máquina de solda que comprei com eles e que até livro tive que ler para aprender a mexer”.
Em contrapartida, anos antes, no mesmo local, foi sem manual de instruções que o petropolitano João Pinto de Oliveira Júnior, de 71 anos, deu início a sua experiência como estoquista da casa.
Sua passagem por ‘Ao Regador’ foi breve. Cerca de um ano e meio. Para João, contudo, os frutos cultivados naquele canteiro foram duradouros. Segundo ele, o estabelecimento e, sobretudo, o senhor Elmo, o ajudaram a moldar sua personalidade, seu modo de viver. “A loja tinha muitas histórias bonitas. Era um negócio fantástico”.
Duas das principais delas focadas nas figuras dos vendedores Valdir e ‘seu José’ que, na arte e nos palcos, encontraram o dom de disseminar a vida. Valdir, na música e ‘seu José’, no teatro. Amigo de infância de Valdir, João o descreve como “um mulato forte que cantava muito Agnaldo Timóteo” e que “estava sempre em programas de auditório”.
‘Seu José’, por outro lado, é lembrado pelo também artista da vida, o bancário, professor, escritor e ator, Joaquim Eloy, de 85 anos. Para ele, mais do que acesso a um estoque com bom preço, a ‘Ao Regador’ era passe para um “dramaturgo, ensaiador e diretor de cena de inteligência privilegiada”.
‘Seu José’, para a maioria, era, aos olhos do professor Joaquim, eterno ‘Scheller’: referência a um “papel que representou em uma peça e que cobriu-o de elogios”. No caso dos Pfeiffer estavam eles cobertos de razão ao identificar a casa, e a família, como regador: aquela que irrigou e tornou canteiros propícios para o desenvolvimento da vida.
(Matéria publicada no jornal Tribuna de Petrópolis em 05/04/2020)